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Boletim Especial n. 24 - 04/12/2020



No Boletim n. 24, Dulce Meire Mendes Morais (USP) apresenta dados da pesquisa Fapesp sobre mulheres indígenas, gênero e violência no Rio Negro/Amazonas, especificamente da cidade de São Gabriel localizada no noroeste amazônico, na divisa com a Colômbia e a Venezuela. Para além da coleta e análise dos dados sobre violência de gênero, o projeto procura compreender como mulheres indígenas se articulam no enfrentamento de violências que sofrem em espaços públicos e privados. A autora traz, também, relatos sobre como essas mulheres estão se articulando em tempos de pandemia da Covid-19.

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MULHERES DO FIM DO MUNDO: MOBILIZAÇÃO E LUTA INDÍGENA EM SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA


Por Dulce Meire Mendes Morais

Foto: Na imagem o ato pelo Dia Internacional da Mulher em 8 de Março.  Foto por Ana Amélia Hamdan/Amazônia Real. Disponível em: <https://amazoniareal.com.br/pesquisa-revela-uma-decada-de-violencia-contra-mulheres-indigenas-em-sao-gabriel-da-cachoeira>, acesso em 30/11/2020..


Era 17 horas do dia 8 de março em São Gabriel da Cachoeira. Estávamos de mãos dadas formando um círculo em torno de uma caixinha de areia e de um vaso de cacto. Cada mulher indígena do círculo – das etnias Tariana, Tukano, Baniwa, Baré e Desana – ia, uma a uma, ao centro da roda e falava em memória de outra mulher morta ou violentada. Depois de falar, cada mulher pegava um punhado de areia da caixinha e colocava no vaso onde a planta estava. No fim, uma mulher Baniwa encheu a mão de areia e disse: “o cacto é uma planta muito forte, que consegue nascer entre pedras, suas raízes são penetrantes e, da mesma forma, vocês também o são”[1].

São Gabriel está localizada no noroeste amazônico, na divisa com a Colômbia e a Venezuela. Sua população é formada majoritariamente por indígenas, apresentando uma grande diversidade étnica e linguística. Para a garantia de direitos e representação dos 23 povos indígenas, no contexto de luta por demarcação de terras, em 1987, é criada a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). As mulheres indígenas, em 2002, como resposta às violências decorrentes, principalmente, do sistema colonial e desenvolvimentista, criaram o Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro (DMIRN/FOIRN), para priorizarem a autonomia e o bem viver, além da representação política das mulheres nas coordenadorias regionais[2].

Em 2018, foram realizadas nove rodas de conversa com as mulheres sobre a violência na cidade. Essas conversas se mostraram importantes para entendermos como as mulheres se articulam para enfrentar as violências que sofrem nos espaços públicos e privados. De acordo com documento técnico[3] produzido a respeito dessas conversas, uma das mulheres que participou desta atividade relatou que, para ajudar a irmã que sofria violência em casa, ensinou o cunhado a tecer, a respirar na cultura, dando-lhe uma ocupação. Respirar na cultura aparece como forma de buscar, no próprio conhecimento, soluções para um problema.

Antes que a pandemia chegasse, acompanhei a criação da campanha “Rio Negro, nós cuidamos!”[4], liderada pelo DMIRN e responsável pela distribuição de cestas básicas tanto nas comunidades indígenas quanto na cidade de São Gabriel, além de auxiliar financeiramente mulheres na produção e distribuição de máscaras. Desta forma, o objetivo da campanha é evitar que as pessoas transitem entre a cidade e as terras indígenas para prevenir a circulação do vírus e, principalmente, garantir que os rionegrinos não sejam diretamente afetados pelas barreiras sanitárias. As mulheres da cidade começaram a se mobilizar participando da construção de cartilha[5], bem como de peça audiovisual[6] a respeito da pandemia e alertas destinados à população sobre a importância de permanecerem em casa, defumarem seus corpos e se protegerem da doença.

Durante trabalho de campo online, percebo que o WhatsApp tem sido uma ferramenta importante no contexto de Covid-19, uma vez que foi observado como as mulheres estavam se articulando para fortalecer umas às outras no combate à doença. Mais uma vez, respirar na cultura foi essencial para o cuidado. Por isso, tem sido importante a utilização de tecnologias de comunicação como lives, vídeos, banners, radiofonia, bem como  o compartilhamento de receitas de chás e benzimentos. Neste período, a equipe de trabalho do projeto “Mulheres indígenas, gênero e violência no Rio Negro” (FAPESP), em parceria com instituições locais, elaborou uma cartilha[7] sobre violência no período de isolamento domiciliar, reforçando as redes de apoio que as mulheres já tinham na cidade. São as mulheres que estão cuidando da família, ao mesmo tempo em que produzem política, seja via discussão sobre violência – e a necessidade da participação dos homens sempre é apontada –, seja por meio da produção de máscaras ou da  arrecadação e distribuição de alimentos.

Desta maneira, fui aprendendo com essas mulheres a potência do trabalho coletivo, a importância das mulheres indígenas em São Gabriel e, assim, passei a observar como elas driblam os cenários críticos que se apresentam, seja em relação aos contextos de violência de gênero ou em relação ao contexto geral da pandemia. Assim como um cacto, elas permanecem fortes, nascendo e sobrevivendo entre as pedras, criando raízes e nutrindo-se em favor da sobrevivência dos parentes, sempre comprometidas até o fim, nas palavras de Elza Soares[8], como mulheres do fim do mundo.

Dulce Meire Mendes Morais é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), especialista em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde (IS) e mestranda em Saúde Pública na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

NOTAS:

1. Este evento ocorreu em 2020, quando estive em São Gabriel da Cachoeira para dar continuidade ao projeto “mulheres indígenas, gênero e violência no Rio Negro”, financiado pela FAPESP (Processo 2019/01714-3). Este projeto é coordenado pelo Prof. Dr. José Miguel Olivar e conta com a parceria da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), do Instituto Socioambiental (ISA) e do Observatório da Violência de Gênero no Amazonas (OVGAM).

2. Coordenaria das Organizações Indígenas do Distrito de Iauaretê, Coordenadoria das Associações Indígenas do Alto Rio Negro e rio Xié, Coordenadoria das Organizações Indígenas do Tiquié, Uaupés e Afluentes, Coordenadoria da Organização Baniwa e Koripako e Coordenadoria das Associações Indígenas do Médio e Baixo Rio Negro. Cabe ressaltar que, desde 2014, sempre há uma mulher na composição da diretoria da FOIRN.

3. OLIVAR, et al, 2019.

4. Disponível em <https://noscuidamos.foirn.org.br/sobre-nos/>. Acesso em 17/11/2020.

5. Coronavírus (COVID-19) Tome cuidado, parente! Disponível em: <https://acervo.socioambiental.org/ >. Acesso: 18/10/2020.

6. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MCeN-jNQFeA> Acesso em: 05/09/2020.

7. “Violência doméstica e violência sexual em tempos de pandemia. Redes de apoio e denúncias: você não está sozinha”. Disponível em: <https://acervo.socioambiental.org/>. Acesso: 18/10/2020.

8. Música “Mulher do fim do mundo” cantada por Elza Soares. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6SWIwW9mg8s>. Acesso em 26/07/2020.

REFERÊNCIAS:

ALVES, Janete; JARDIM, Grace; MORAIS, Dulce; SILVA Dayane; SILVA, Elizângela. “Violência Doméstica e Violência Sexual em tempos de pandemia. Redes de apoio e denúncias: você não está sozinha!”.2020. Disponível em <https://acervo.socioambiental.org>. Acesso: 18/10/2020.

Equipe do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental & Morais, Dulce. “Coronavírus (COVID-19) Tome cuidado, parente!”, 2020. Disponível em <https://acervo.socioambiental.org>. Acesso: 18/10/2020.

Federação das Organizações Indígenas – FOIRN. Rio Negro, nós cuidamos! Disponível em <https://noscuidamos.foirn.org.br/sobre-nos>. Acesso em 17/11/2020.

OLIVAR, J. M; MELO, F.C; DIAS, C; RADLER, J; OLIVEIRA, D. I. Dossiê sobre rodas de conversa com mulheres indígenas sobre violência: projeto mulheres indígenas, gênero e violência no Rio Negro. Relatório técnico. São Gabriel da Cachoeira: ISA, FOIRN, FSP, OVGAM, no prelo, p.78, 2019.

OLIVAR, J. et al. Através do limite: diferenciação, relação e atos de cuidado em contextos críticos na fronteira Amazônica – ênfase em sexualidade, gênero, ciclos de vida e etnia. Relatório parcial, número do processo FAPESP: 2019/01714-3, 2020.

SOARES, Elza. Mulher do fim do mundo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6SWIwW9mg8s>. Acesso em 17/11/2020.

Vozes da Re-existencia na pandemia - Liderança Indígena: Elizângela Baré, 13 de maio de 2020. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=MCeN-jNQFeA&t=26s>. Acesso: 17/10/2020.

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Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre a questão étnico-racial em tempos de crise que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.

A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).

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