- Criado: 14 Dezembro 2020
Boletim Especial n. 28 - 14/12/2020
No Boletim n. 28, Fátima Tavares (UFBA) e Carlos Caroso (UFBA) relatam as questões identificadas por quilombolas da região da Baía do Iguape, situada nos municípios de Cachoeira e Maragogipe/Bahia, para o enfrentamento da pandemia da covid-19. O relato evidencia a ausência do setor público na discussão e a consequente dificuldade em responder com transparência e efetividade às necessidades das comunidades quilombolas e de pescadores, aumentando, conforme evidenciado pelas lideranças, a vulnerabilidade dessas comunidades frente à pandemia.
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Quilombolas e políticas diferenciadas para o enfrentamento da covid-19
Por Fátima Tavares e Carlos Caroso
Foto: Pescadores na Resex Marinha Baía do Iguape, Quilombo Santiago do Iguape. Fonte: Acervo do ObservaBaía/UFBA.
A Resex Marinha Baia do Iguape é um ecossistema de manguezais formado pelo alargamento do rio Paraguaçu na sua região estuarina onde encontra as águas da Baía de Todos os Santos. Situada nos municípios de Cachoeira e Maragogipe, foi criada por Decreto Federal em 2000, sendo atravessada por conflitos decorrentes da sobreposição territorial de quilombos, reserva extrativista e polo naval (ZAGATTO, 2013). Desde 2005 a Resex vem sendo gerida por um Conselho Deliberativo que detém a função de controle social, cuja atividade é coordenada, desde 2007, pelo ICMBio (PROST, 2011; LIMA, 2014).
Desenvolvendo estudos e parcerias nos quilombos dessa região desde 2013, no início de setembro de 2020 participamos, por teleconferência, de uma reunião extraordinária do Conselho com um único ponto de pauta: “Situação do COVID-19 no Recôncavo e ações de enfrentamento: parceria UFRB[1]/Fiocruz/Municípios para atendimento às comunidades”, conforme indicado no convite. Dentre os Conselheiros presentes, estavam gestores do ICMBio, representantes de associações extrativistas, lideranças de comunidades quilombolas, do Conselho Quilombola da Bacia e Vale do Iguape (Cachoeira), do Conselho Quilombola de Maragogipe, da ONG Vovó do Mangue, da empresa Votorantim Energia, do Instituto do Meio Ambiente-Inema do Estado da Bahia, da Capitania dos Portos da Bahia, além de pesquisadores da Fiocruz e de universidades. A reunião vinha sendo demandada pelas lideranças quilombolas desde os primeiros encontros virtuais da Resex, ainda no início da pandemia, preocupação que só vinha aumentando, conforme enfatizado pelas lideranças presentes. Por meio do relato da questão do enfrentamento à covid-19, tema da reunião, apresentamos as formas de luta por direitos diferenciados e as dificuldades das comunidades quilombolas (e de pescadores) junto às municipalidades.
Em seguida à apresentação da situação de disseminação do coronavírus nos municípios situados na Resex por uma professora da UFRB (que destacou o interesse da Universidade pelo acompanhamento específico da situação nos quilombos), se deu a discussão das providências que estavam em curso. Para isso, dois professores da mesma instituição anunciaram o andamento da parceria entre a Fiocruz/Bahia e a UFRB, possibilitando o acesso das comunidades quilombolas ao exame RT-PCR, de detecção precoce da doença, ao invés da realização dos testes rápidos. A Fiocruz/Bahia disponibilizaria os kits diagnósticos com o limite de realização de 200 testes diários, mas dependia da parceria com as secretarias municipais de saúde de Cachoeira e de Maragogipe para fazer a coleta e enviar a Salvador em condições adequadas. Os entraves, segundo os pesquisadores, estavam na completa ausência de resposta por parte da Secretaria de Cachoeira e da dificuldade da Secretaria de Maragogipe que, embora tivesse acenado positivamente à parceria, não conseguia acessar o sistema estadual de gerenciamento de exames, do Lacem, para habilitação do cadastro dos pacientes.
O debate que seguiu às apresentações dos pesquisadores enfatizou a importância da qualidade da testagem para o acompanhamento mais eficiente da pandemia nas comunidades quilombolas, argumento que foi reforçado por representantes quilombolas. Não se tratava apenas da questão da subnotificação, problema que marca a forma de enfrentamento da doença no Brasil, mas o que se destacava eram as condições de vulnerabilidade das comunidades, com maior dificuldade de buscar atendimento adequado em hospitais das sedes municipais. O apoio dos representantes quilombolas e extrativistas à parceria, por meio da UFRB, para a disponibilização de testes RT-PCR para as comunidades, sinalizava uma estratégia para lidar com essa assimetria, possibilitando o diagnóstico precoce e o rastreamento dos casos suspeitos. Como criticamente apontado por Ananias Viana[2], o envio de equipes às comunidades para realização de testes rápidos com três pessoas de cada comunidade não se configura em política adequada: “A gente não precisa desse teste [teste rápido], a gente precisa de outro teste, em massa (...). O teste para quem já tá com sintoma não serve. A gente não vai ter condições de curar as pessoas já com agravamento”.
De fato, como esclarece um dos pesquisadores, a iniciativa dependia de uma mudança de protocolo das secretarias municipais, que testam o paciente apenas quando há sintomas. Se há resistências das secretarias em aumentar a testagem, alegando ser necessário mais profissionais, por outro lado seria mais efetivo como política pública deslocar o profissional e fazer a coleta in loco. Conclui o pesquisador que a proposta da parceria com a Fiocruz/Bahia conferia um tratamento diferenciado para as comunidades quilombolas, fazendo com que os familiares de um caso suspeito também pudessem ser testados.
A ausência de representantes das secretarias na reunião, bem como a percepção da morosidade e falta de resposta dos gestores, aponta as dificuldades junto às municipalidades. A controvérsia da etnicidade também atravessou o argumento do “tratamento diferenciado” e dizia respeito às relações entre as comunidades quilombolas e as pesqueiras (ALMEIDA, 2011), gerando questionamento de uma liderança acerca das “certificações” de autenticidade, que são expressas na fala de um participante: “Gostaria que inserissem os pescadores também. (...) De onde vieram os quilombolas senão do meio dos pescadores? De onde vieram os pescadores senão do meio dos quilombolas? Todos são quilombolas apesar de não serem certificados (...) não sei por que fizeram essa separação”. Esta é, muitas vezes, uma questão sensível na relação entre comunidades tradicionais. Contudo esse “divisor” não prosperou nas justificações apresentadas por Ananias, que reivindicou igualdade de tratamento para as comunidades pesqueiras.
As dificuldades de implementação de políticas diferenciadas já são bem conhecidas dessas lideranças que, desde meados dos anos 2000, vêm trilhando os caminhos alternativos das parcerias, objeto da reunião aqui apresentada (CARVALHO, 2016). Vale destacar, especialmente, as estratégias propositivas de demandas do Conselho Quilombola da Bacia e Vale do Iguape (SANTOS et al, 2017), que tem investido na articulação com órgãos do judiciário (MP-BA, MPF, Defensoria Pública etc.), universidades, ONGs e outros parceiros na feitura de cartas abertas, moções e outros instrumentos de visibilização das demandas quilombolas por políticas de ações afirmativas para além da regularização dos territórios, incorporando alternativas de desenvolvimento, cultura e saúde (ARRUTI, 2009; BASSI e TAVARES, 2017; TAVARES et al, 2019).
Fátima Tavares é Doutora em Antropologia, professora titular do Departamento de Antropologia da UFBA. E-mail de contato: fattavares@ufba.br
Carlos Caroso é PhD. em Antropologia, professor titular do Departamento de Antropologia da UFBA. E-mail de contato: caroso@ufba.br
Notas:
1. Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
2. Liderança quilombola destacada, de Cachoeira, e importante interlocutor em nossa pesquisa, a menção do seu nome é sempre enfatizada por ele.
Referências:
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Quilombos e novas etnias. Manaus: UEA Edições, 2011.
ARRUTI, José Maurício. Políticas públicas para quilombos: terra, saúde e educação. In: DE PAULA, Marilene; HERINGER, Rosana (orgs.). Caminhos convergentes, estado e sociedade na superação das desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Boll, ActionAid, 2009. p. 75-110.
BASSI, Francesca Maria Nicoletta; TAVARES, Fátima. Preparando o banquete, sonhando a festa: memória e patrimônio nas festas quilombolas (Cachoeira-Bahia). In: ACENO-Revista de Antropologia do Centro-Oeste, vol. 4, n. 7, 2017. p. 15-32. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/aceno/article/view/5062. Acesso em: 30/10/2020.
CARVALHO, Ana Paula Comin de. Tecnologias de governo, regularização de territórios quilombolas, conflitos e respostas estatais. In: Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 22, n. 46, jul./dez, 2016b p. 131-157. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/horizontesantropologicos/article/view/58905. Acesso em: 30/10/2020.
LIMA, Luis Antonio Pereira. Gestão participativa na reserva extrativista marinha Baía do Iguape, Maragogipe-Ba: o desafio do controle social. Dissertação (Mestrado Profissional em Gestão de Políticas Públicas e Segurança Social). Cachoeira: UFRB, 2014. Disponível em: http://www.repositorio.ufrb.edu.br/handle/123456789/870. Acesso em: 25/10/2020.
PROST, Cathérine. Resex Marinha versus Polo Naval na Baía do Iguape-BA. In: Novos cadernos NAEA, vol. 13, n.1, 2010. Disponível em: https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/391/0. Acesso em: 25/10/2020
SANTOS, Cléia Costa dos; JOVELINO, Rosane Viana; SILVA, Gilmar Bittencourt Santos. Conselho Quilombola e sua função deliberativa no planejamento do estado: o caso da Bacia e do Vale do Iguape. In: Bahia Análise & Dados, Salvador, v. 28, n. 2, p. 178-195, jan. 2019. Disponível em: http://publicacoes.sei.ba.gov.br/index.php/bahiaanaliseedados/article/view/151. Acesso em: 13/10/2020.
TAVARES, Fátima, CAROSO, Carlos, BASSI, Francesca, PENAFORTE, Thais e MOARIS, Fernando. Saberes e fazeres terapêuticos quilombolas: Cachoeira, Bahia. Salvador: EDUFBA, 2019.
ZAGATTO, Bruna Pastro. Sobreposições Territoriais no Recôncavo Baiano: a Reserva Extrativista Baía do Iguape, Territórios Quilombolas e Pesqueiros e o Polo Industrial Naval. In: RURIS-Revista do Centro de Estudos Rurais-UNICAMP, vol. 7, n. 2, 2013. p. 13-32. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ruris/article/view/1881. Acesso em: 22/10/2020.
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Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre a questão étnico-racial em tempos de crise que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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